15 de jul. de 2014

O caminho da prática – Plena Atenção

Thich Nhat Hanh


(...) Somos nossa felici­dade, nosso sofrimento, nosso amor e nossa raiva. Tratamos todas as forma­ções mentais da mesma maneira, com espírito de não-dualidade. Não faze­mos de nós um campo de batalha, onde um lado luta com o outro. E é isso exatamente o que algumas tradições nos ensinam – [que] o certo deve combater para vencer o errado. No budismo, vemos os dois lados como sendo nós mesmos e tentamos aceitar e examinar todas as partes, reconhecendo sua na­tureza interdependente. Temos que aceitar as aflições, as formações mentais nocivas, antes de poder transformá-las. Quanto mais as combatemos, mais fortes se tornam. Quanto mais as reprimimos, mais importância ganham.

O que fazer para transformar essas sementes de sofrimento tão pro­fundamente enraizadas? Há três maneiras de trabalhá-las. A primeira coisa a fazer é semear e regar as sementes de felicidade. Em lugar de trabalhar­mos diretamente com as sementes de sofrimento, fazemos com que as se­mentes de felicidade as transformem. Deixamos as sementes de sofrimen­to ficarem sossegadas na consciência armazenadora enquanto plantamos novas sementes de paz, alegria e felicidade ou nutrimos as que já tenham brotado. A consciência mental envia essas sementes de paz e felicidade pa­ra transformarem as sementes de sofrimento profundamente enraizadas. Essa é uma transformação indireta.

A segunda maneira é praticar permanentemente a plena consciência de modo a estarmos aptos a reconhecer as sementes do sofrimento quando elas surgem. Assim, todas as vezes que sementes de sofrimento se manifes­tarem como formações mentais, elas serão banhadas pela luz da plena cons­ciência. Ao entrarem em contato com a plena consciência, elas ficam enfra­quecidas. Se não estivermos plenamente conscientes, não seremos capazes sequer de reconhecer as sementes de sofrimento. Com a plena consciência, podemos reconhecê-Ias e não mais as temer.

Se um pássaro for atingido por uma flecha, todas as vezes que enxer­gar um arco ficará com medo. Deixará até de pousar num galho que tenha a forma de arco. Se formos feridos quando crianças, as sementes de sofri­mento que recebemos estarão conosco ainda hoje. A maneira de nos rela­cionarmos com a vida no momento presente baseia-se nessas sementes. To­dos os dias, sementes do passado se manifestam na nossa consciência mental, e por não terem sido banhadas com a luz da plena atenção, não te­mos consciência delas. Se estivermos com a mente plenamente atenta, to­das as vezes que tais sementes brotarem, poderemos reconhecê-las. "Oh, é você! Eu a conheço." Só esse reconhecimento já as faz perder um tanto de seu poder sobre nós. As sementes de sofrimento são um campo de energia, como o é também a plena atenção. Quando esses dois campos se encon­tram, as sementes de sofrimento são transformadas. A transformação ocor­re no contato daquelas sementes com a plena consciência.

A terceira maneira de lidar com as aflições que carregamos conosco desde a infância é deliberadamente trazê-las para a nossa consciência men­tal. Se nossa plena consciência estiver forte e firme, não há por que espe­rar que as sementes de sofrimento surjam inesperadamente. Sabemos que elas jazem no porão da nossa consciência armazenadora e as convidamos para virem até nossa consciência mental - desde que esta não esteja ocu­pada com outras coisas e assim possa verter sobre elas a luz da plena cons­ciência. Chamamos a tristeza, o desespero, os arrependimentos e as sauda­des que no passado nos foi difícil tocar, e os convidamos para sentarem-se e conversar conosco, como velhos amigos. Porém, antes de convidá-Ios, devemos nos certificar de que a lâmpada da plena consciência está acesa brilhando firme e forte.

Se praticamos esses três modos de lidar com nossas sementes de sofri­mento, adquirimos estabilidade. Mas a pessoa que está passando por um grande sofrimento e não sabe como praticar a plena consciência, não deve começar pelo terceiro método - convidar as sementes de sofrimento a vi­rem até a consciência mental. Antes deverá nutrir e fazer brotar as semen­tes de felicidade. Quando a pessoa tiver feito progressos no primeiro méto­do e aprendido a gerar mais energia de plena consciência, ela poderá tentar o segundo método, o de aceitar e reconhecer o sofrimento quando ele sur­ge. Quanto maior a capacidade de reconhecer as sementes de sofrimento, mais elas enfraquecem. Finalmente, sentindo-se forte o suficiente, a pessoa poderá usar o terceiro método convidando as sementes de sofrimento a vi­rem até a consciência mental onde a plena consciência poderá tocá-Ias e transformá-las.

Lidar com o sofrimento é como segurar uma serpente venenosa. Te­mos que aprender tudo a respeito da serpente, nos fortalecer, nos tornar mais seguros a fim de que possamos pegá-Ia sem que ela nos fira. No fim desse processo, estaremos prontos para enfrentar a serpente. Se nunca a en­frentarmos, um dia ela nos surpreenderá e morreremos de uma picada dela. A dor que carregamos nos níveis profundos da nossa consciência é seme­lhante. Quando cresce e nos enfrenta, nada podemos fazer se não tivermos praticado para fortalecer e tornar estável a plena consciência. Somente quando estamos prontos, é que devemos convidar nosso sofrimento para vir à tona. Então, quando ele vem, nós podemos manobrá-Io com seguran­ça. Para transformar nosso sofrimento, não lutamos nem procuramos nos livrar dele. Simplesmente o banhamos com a luz da plena consciência.

(...) Com a energia da plena atenção, podemos lidar com as flores e o lixo que estão em nós. Com a plena consciência, protegemos as flores e fazemos o lixo voltar a ser flor. Não temos mais medo do nosso lixo. Um bodhisattva sabe como transformar seu lixo novamente em flores. A pessoa tola procura fugir do lixo, mas se tentamos abandoná-lo, que tipo de alimento teremos para nutrir nossa flor?

Há momentos em que somos capazes de ver a natureza da interexistên­cia nas pessoas e nas coisas. Mas há outros em que esquecemos e recaímos no mundo da construção imaginária. É por isso que a prática continua é im­portante para que a flor da iluminação desabroche permanentemente no campo da nossa consciência mental. Assim como a luz do sol brilha sobre a vegetação fazendo-a crescer, toda vez que acendemos a luz da plena cons­ciência, podemos transformar todas as formações mentais. Toda formação mental é sensível à energia da plena atenção. Quando a formação mental é saudável, a plena atenção a ajuda a crescer e florir. Quando a formação men­tal é negativa, a energia da plena atenção pode transformá-la em algo posi­tivo.

A plena consciência é a própria essência da nossa prática.


(Thich Nhat Hanh, in “Transformações na consciência – de acordo com a psicologia budista”, pág. 231-233).



Fonte:

http://groups.google.com/group/sangha-vix/web/no-espelho-da-morte

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